20/06/2008
Marco Túlio Zanini
Confiança pode ser compreendida como uma subclasse das situações de risco relacionadas ao comportamento humano. Ela opera como um mecanismo informal de coordenação e controle, produzido por normas sociais que podem aumentar a eficiência das transações, tanto em mercados quanto na hierarquia das empresas.
Quando existe relação de confiança entre as pessoas, cresce a probabilidade de trocas e compartilhamento de informações, reduzem-se os conflitos e aumentam a satisfação e motivação geral. Igualmente, diminuem os custos de transação relacionados à aplicação excessiva de instrumentos burocráticos de segurança, usados para garantir que as transações ocorram – como monitoração, regras e procedimentos formais.
Segundo a literatura especializada e estudos empíricos realizados nas organizações, um ambiente de alta confiança apresenta diversas vantagens, como o aumento da satisfação e comprometimento dos empregados, melhoria de comunicação entre superior e subordinado, aceitação e delegação de autoridade, exercício de liderança, percepção de justiça nos julgamentos, menor competição interna em negociações e menos conflito, legitimidade das intenções de mudança organizacional, melhor desempenho individual e em equipes de trabalho.
Se os benefícios de um ambiente de alta confiança são evidentes, por que encontramos ainda ambientes de baixa confiança nas relações de trabalho, que com mecanismos de coerção estimulam a competição e a desconfiança entre as pessoas? Essa prática privilegia a pressão individual por melhores resultados no curto prazo, em detrimento dos ganhos de longo prazo, fruto da cooperação espontânea baseada em relações de confiança.
Como em qualquer decisão estratégica ancorada na lógica econômica, privilegiar recursos para realizar um investimento em detrimento de outro, deve ser uma questão de custo e benefício.
Entretanto, a adoção de diferentes estilos de gestão dentro das empresas tem efeitos distintos sobre a motivação dos empregados, muitas vezes imperceptíveis à racionalidade dos gestores que tomam decisões dessa natureza, mas devem ser levados em consideração, pois, no longo prazo, podem ter impacto em seus interesses e nos interesses da empresa.
A formação dos estilos de gestão
De maneira geral, a forma com que as empresas incentivam as relações de poder e autoridade entre chefes e subordinados pode produzir, basicamente, dois efeitos distintos: ênfase numa relação de confiança, baseada em consenso e reciprocidade; ênfase numa relação de medo, baseada em coerção, ameaça e obediência cega.
Os dois coexistem nas relações de trabalho, ou seja, algo de coerção estará sempre presente, até mesmo nas relações de alta confiança, e vice-versa. A intensidade, constância e qualidade das interações humanas dentro das empresas é que darão ênfase a um desses efeitos opostos. Quando padrões de comportamento se repetem sucessivamente, suportados por alguns incentivos, eles passam a caracterizar um estilo de gestão específico.
As pessoas podem aprender que praticar a reciprocidade apostando no longo prazo pode ser vantajoso, e, assim, tentar cooperar de forma mais espontânea; ou, ao contrário, aprenderem a não confiar uns nos outros, e aí buscarão competir por seus próprios interesses egoístas, tentando tirar vantagem no curto prazo. Ao final, o conjunto de incentivos aplicados caracteriza um determinado estilo de gestão, seja baseado na confiança, quando suportado por relações de natureza consensual, seja baseado no medo, quando suportado por relações de natureza mais coercitiva.
Através da manutenção de determinados padrões de comportamento, frutos de normas e regras, formais e informais, as empresas definem de forma mais ou menos intencional a natureza das suas relações humanas.
Na interpretação da formação desses distintos estilos de gestão há uma série de pressupostos subjetivos que dirigem as interações humanas, como por exemplo, a percepção geral da natureza humana – se essencialmente boa ou oportunista – ou as experiências pessoais dos que dirigem a empresa ao longo de suas carreiras. Junto às características do ambiente institucional relacionado à indústria, esse conjunto de pressupostos definirá as percepções e orientará os processos de tomada de decisão, caracterizando o estilo de gestão da empresa.
Seus empregados são percebidos como dignos de confiança ou essencialmente oportunistas, buscando tirar proveito pessoal de qualquer situação? Devem ser constantemente monitorados e vigiados, ou são dignos de confiança e autonomia para decidirem sobre a melhor forma de realizar seu trabalho ou o melhor uso dos bens da empresa?
No centro dessas questões está uma decisão individual: confiar ou não confiar? Através de seu sistema de conseqüências, baseado em recompensas e punições, a empresa define a lógica do jogo corporativo e passa a ensinar a seus empregados qual dinâmica deve prevalecer, e qual deve ser eliminada.
A sombra do medo
Se, por um lado, confiança sugere o investimento numa expectativa positiva de benefícios futuros, por outro lado, o medo é uma emoção negativa que surge na expectativa e na incerteza sobre algo de ruim que pode acontecer. O medo se apresenta aos empregados de diversas formas: medo de ser incapaz ou incompetente para realizar uma tarefa; medo de falar algo fora do contexto e ser punido; medo de ser humilhado, perder o poder, ou ser usurpado de suas melhores idéias; medo da falta de reconhecimento; e medo da exclusão, de não mais participar ou pertencer.
Ao contrário de um estilo de gestão baseado na confiança, em que a busca conjunta pelo bom desempenho pressupõe não a abdicação de seus interesses individuais, mas o compartilhamento de responsabilidades e resultados, sucessos e insucessos de uma empreitada, um estilo de gestão com ênfase no desempenho individual enfatiza a busca direta de interesses egoístas.
Isso aumenta as chances de emergir, de forma solitária e isolada, a ameaça e o medo pela falta de reconhecimento, insucesso, fracasso ou exclusão. Um estilo de gestão que se oponha à criação e manutenção de uma atmosfera de confiança entre as pessoas estará pouco comprometido em satisfazer as necessidades humanas mais profundas de pertencimento, reconhecimento e identificação dentro do grupo social.
Esses sentimentos possuem a nobre função de imprimir significado ao trabalho, principal fonte de motivação. Caracterizamos o seu oposto como um estilo de gestão baseado no medo, pois no abrandamento dessas propriedades sociais, o comportamento futuro daqueles que interagem dentro do sistema torna-se incerto e passa a representar uma ameaça constante à segurança das pessoas.
Até certo ponto, o medo é um dispositivo de segurança e preservação, presente em qualquer situação de incerteza da vida humana. Um estilo de gestão baseado no medo utiliza mecanismos coercitivos que produzem esta emoção humana para efeito de controle organizacional.
Geralmente, a ênfase nos mecanismos formais de controle e monitoração, de natureza mais coercitiva, é acompanhada de pressão sobre os indivíduos, estimulando a competição interna para produção de resultados. O fato não é novo. Historicamente, governos, grupos religiosos e organizações fizeram largo uso de mecanismos coercitivos e se utilizaram do medo para governar sociedades.
Como afirma Adauto Novaes, “sabemos pela experiência de vários momentos da história, que toda vez que o medo foi usado como instrumento político, o primeiro e mais terrível efeito foi o de diminuir a capacidade de autonomia do sujeito, de reduzir os homens à desnaturação; se o homem é um ser-para-a-liberdade, quando politicamente dominado pelo medo ele perde a sua natureza humana, muda de natureza, caindo no estado de decadência e alienação”.
Portanto, a desvantagem desse estilo de gestão para as empresas é bastante evidente. Num momento de grande comoditização de produtos, um diferencial competitivo de mercado é adotar uma gestão que privilegie a liberdade individual e tenha como premissa maior a autonomia para o indivíduo, visando incentivar a criatividade e estimular processos de inovação. Um estilo de gestão baseado no medo vai contra essa lógica de produção.
O medo é um sintoma da supressão de autonomia individual, que restringe a liberdade e a criatividade. Sob ameaça e medo, as pessoas deixam de oferecer espontaneamente a sua contribuição individual e traçam outras estratégias pessoais de defesa, buscando preservar sua posição.
Ainda que se sintam pressionadas a trabalhar, deixam de traçar estratégias de cooperação espontânea e reciprocidade. Com isso aumenta-se a necessidade do controle e monitoração. Isso vai contra as tendências atuais de motivação de pessoas como sujeitos dos processos de inovação e criatividade. Devemos distinguir a liderança que emerge das estruturas sociais sob o estilo do medo, daquelas que nascem de forma mais espontânea, suportadas naturalmente pela confiança que os subordinados depositam no líder.
Certamente, sob a ameaça e o medo, as relações de escravidão na antiguidade e servidão feudal sustentaram eficientemente formas de organização econômica no passado. Devemos questionar, portanto, se a ênfase no medo como estilo de gestão não seria um retrocesso às estas formas de produção mais primitivas.
As empresas que têm bom desempenho de mercado, mesmo trabalhando a lógica do medo e da ameaça, possuem de fato uma gestão de sucesso, ou outros diferenciais de mercado lhes conferem vantagens competitivas que poupam maiores preocupações com uma gestão de qualidade? Ao longo da história, pela ausência do conhecimento sobre o próprio ser humano e suas motivações mais profundas, mecanismos de coerção foram sistematicamente aplicados com objetivos econômicos.
No entanto, o mais importante – o valor a ser extraído do trabalho – baseava-se não no conhecimento, mas no trabalho físico, de fácil controle e monitoração. Na verdade, grande parte do trabalho humano ainda demanda esforço físico, mas, de forma inequívoca, o valor econômico tem migrado historicamente para tarefas que exigem a aplicação mais intensiva do conhecimento dos indivíduos nos processos produtivos.
A autonomia pela confiança
Até certo ponto, o avanço do capitalismo permitiu que o conhecimento fosse democratizado e amplamente aplicado nos processos produtivos. Com o advento da Era do Conhecimento, as tarefas organizacionais tornaram-se mais especializadas, exclusivas, únicas e complexas. Hoje, a aplicação intensiva do conhecimento nos processos produtivos representa uma dinâmica bem diferente daquela baseada nas economias mais antigas, definindo ao final um valor diferencial de mercado.
O conhecimento veio somar-se aos tradicionais fatores de produção – Capital, Trabalho e Terra –, tornando-se o de maior relevância. Por apresentar propriedades bem distintas, o conhecimento transformou a natureza do trabalho humano e, conseqüentemente, exigiu novos mecanismos de controle e motivação. Não sem razão, o fato de atribuirmos hoje maior importância às pessoas é fruto desta nova Era do Conhecimento.
A geração de valor é alcançada exatamente pelo maior consentimento e esforço dos empregados, que voluntariamente buscam inovar com a aplicação de seu conhecimento na resolução dos problemas. Passamos de uma lógica de motivação de pessoas baseada na obrigação e obediência, para a vontade e o consentimento. O consenso e a reciprocidade, que caracterizam particularmente o estilo de gestão baseado na confiança, passaram a ser essenciais para o compartilhamento de informações e a busca da cooperação espontânea.
Esse estilo se baseia em princípios de justiça e benefícios mútuos. Seu grande diferencial está na maior autonomia dos indivíduos, que passam a ter sua liberdade preservada, pela confiança que lhes é depositada. Essa é uma pré-condição para a flexibilidade organizacional, transferência do conhecimento, redução de conflitos e, conseqüentemente, redução de custos.
Empresas que investem nas relações de confiança buscam freqüentemente desenvolver seus recursos humanos como forma de aprimorar seus sistemas de qualidade. Já as organizações que adotam a gestão pelo medo preferem trabalhar com alta rotatividade de empregados e baixo investimento no treinamento das pessoas. O primeiro grupo de empresas busca a sustentabilidade e a construção de valor no longo prazo, enquanto o segundo grupo tem o seu foco nas oportunidades de curto prazo.
Brasil: a barreira da diferença social
Quando a cultura de um país apresenta uma série de valores e normas institucionalizadas que favorecem a cooperação espontânea entre as pessoas, eles formam a base para o surgimento das grandes corporações privadas. A capacidade de associação espontânea institucionalizada, baseada nas relações de confiança existentes numa sociedade, faz com que as pessoas reduzam as incertezas do presente e confiem umas nas outras, apostando em interações que produzam benefícios futuros.
Como efeito de instituições sociais mais estáveis, as incertezas em relação ao futuro são reduzidas e os benefícios assegurados, aumentando a confiança nas interações entre pessoas dentro de uma sociedade e assegurando investimentos de longo prazo para a sustentabilidade deste sistema. Essa cultura baseada em princípios de justiça compartilhados produz riqueza a partir destas interações sucessivas, baseadas em confiança.
O contrário de um sistema governado por instituições que suportam as relações de confiança, sustentando regras de cooperação espontânea, é um sistema governando pela desconfiança e pelo medo. Ambientes institucionais de baixa confiança ameaçam a vida social e econômica dos indivíduos e demandam estruturas de proteção e segurança para garantir que as pessoas possam negociar com pelo menos parte dos seus direitos preservados. Existe uma ineficiência natural nesses ambientes.
Geralmente, as sociedades de baixa confiança utilizam mais mecanismos coercitivos para inibir os comportamentos oportunistas e a violência. Esses não são substitutos perfeitos para as relações de confiança. Soluções formais são menos eficazes para a promoção da cooperação e podem abrir espaço para o surgimento de organizações ilegais e oportunismos.
Além disso, sociedades de baixa confiança privilegiam perspectivas de custo prazo. Isso dificulta consideravelmente investimentos concretos na prática da sustentabilidade, tornando-se muitas vezes um discurso vago e sem credibilidade.
Em menor escala, o mesmo ocorre dentro das empresas.
Ao adotarem um estilo que privilegia ações gerenciais baseadas na pressão individual por resultados de curto prazo, perdem os benefícios desencadeados pelas relações sociais construídas no longo prazo. Esse estilo busca ganhos instantâneos em detrimento de ganhos socioeconômicos sustentáveis, com probabilidade de ocorrerem ações oportunistas de quem aprendeu a levar vantagem em tudo e a menosprezar os ganhos mútuos do esforço coletivo.
No Brasil de hoje, a utilização desses diferentes estilos de gestão ainda é fortemente influenciada pelos efeitos de uma cultura que, em sua história, perpetuou uma profunda relação de desigualdade. Notavelmente, isso tem influenciado nossa sociedade em relação à igualdade de direitos, oportunidades, e justiça.
Essa dimensão da nossa cultura aparece claramente nas pesquisas conduzidas pelo antropólogo Geertz Hofstede, um dos trabalhos mais relevantes na área de cultura comparada. O autor pesquisou em vários países algumas dimensões da cultura, dentre elas a percepção de distância social de poder nas sociedades. O Brasil aparece como um dos países com maior distância social de poder. Ou seja, percebemo-nos como desiguais.
Os efeitos da distância social estão presentes em nossa sociedade de diversas formas. Isso pode ser bem ilustrado em nossas relações domésticas e na divisão social dos espaços. Uma dona-de-casa e uma empregada podem compartilhar o mesmo ambiente social, com horas de convívio no mesmo espaço físico, ao longo de suas vidas, mas a forma como uma e outra se percebem será sempre diferente, com atribuições sociais distintas.
No Brasil, a divisão social sempre reservou, embora de forma velada, um espaço físico minúsculo e sem privilégios para os empregados. Por mais que, racionalmente, essas pessoas acreditem ter os mesmos direitos e deveres como cidadãos do mesmo país, sua percepção é de que o gozo de determinados privilégios decorrem de sua situação social e não apenas da diferença econômica. Essa percepção de desigualdade de direitos diminui a probabilidade das pessoas confiarem umas nas outras.
Na verdade, essa dimensão também está refletida nas organizações e influencia nosso estilo de gestão empresarial. O estilo brasileiro é ineficiente quando tende a apresentar efeitos colaterais negativos, como, personalismo, nepotismo, impunidade e a ausência de meritocracia.
Com efeito, um dos resultados é isolar o indivíduo na base da pirâmide hierárquica, impedindo que lhe sejam atribuídas autonomia e responsabilidades. O grande prejuízo para as empresas é que, em determinados níveis, as relações de confiança entre chefes e subordinados tornam-se extremamente difíceis, por vezes mascaradas pela socialização. Apesar de a nossa cultura ser de grande interatividade e sociabilidade, isso não implica necessariamente alta confiança.
Outro efeito do modelo de baixa confiança institucional é a grande dificuldade com que se deparam as empresas familiares em expandirem suas organizações além dos laços de consangüinidade, e formarem organizações baseadas em estruturas mais profissionais e impessoais.
Em muitos casos, os dirigentes dessas empresas preferem liquidá-las a assumirem a gestão de um corpo de profissionais com o qual não mantêm laços estreitos de confiança. Isso posiciona o Brasil, assim como outros países latinos, na lista das nações com dificuldades históricas para a formação de grandes corporações privadas sem a intervenção direta do Estado.
No entanto o problema tem solução.
Cultura não é um elemento determinante do comportamento humano e pode funcionar de forma eficiente como um mecanismo de coordenação informal dentro das empresas. Alguns processos de mudança cultural em empresas brasileiras foram realizados com esmero e tiveram sucesso. É preciso capacitar gestores para esse processo, que é lento e meticuloso. Os fatores críticos são o tempo e o desenvolvimento de uma inteligência em gestão capaz de conduzir o processo de mudança de cultura por meio da conscientização, diálogo e inclusão.
Marco Tulio Zanini é professor de Gestão Estratégica de Pessoas e Comportamento Organizacional da Fundação Dom Cabral, doutor pela Universidade de Magdeburg, na Alemanha. Autor do livro “Confiança – O Principal Ativo Intangível de uma Empresa” – Editora Campus/Elsevier, 2007; e “Trust within Organizations of the New Economy” – Editora Deutscher Universitäts Verlag, Wiesbaden, Alemanha, 2007.
Para se aprofundar no tema:
o Castells, M. (1996): The Rise of the Network Society, in: The information age – Economy, society and culture, Vol. 3, Blackwell, Oxford, UK.
o Fukuyama, F. (1995): Trust – The Social Virtues and the Creation of Prosperity, Harmondsworth, Middlesex, Penguin Books.
o Novaes, A. (2007): Ensaios sobre o Medo, Editora SENAC, São Paulo.
o Zanini, M. F. (2005): Relações de Confiança nas Empresas da Nova Economia Informacional – uma avaliação dos efeitos da incerteza sobre o comportamento organizacional, Cadernos EBABE.BR, No.4, Dezembro.
o Zanini, M. F. (2007): Confiança – O Principal Ativo Intangível de uma Empresa, Editora Campus.